sábado, 12 de abril de 2008

Dharavi, maior favela da Ásia.



“Acordei com o sol rubro do fim de tarde; e aquele foi um momento marcante em minha vida, o mais bizarro de todos, quando não soube quem eu era – estava longe de casa, assombrado e fatigado pela viagem, num quarto de hotel barato que nunca vira antes, ouvindo o silvo das locomotivas, e o ranger das velhas madeiras do hotel, e passos ressoando no andar de cima, e todos aqueles sons melancólicos, e olhei para o teto rachado e por quinze estranhos segundos realmente não soube quem eu era. Não fiquei apavorado; eu simplesmente era uma outra pessoa, um estranho, e toda a minha existência era uma vida mal-assombrada, a vida de um fantasma. Eu estava na metade da América, meio caminho andado entre o Leste da minha juventude e o Oeste do meu futuro, e é possível que tenha sido exatamente por isso que tudo se passou bem ali, naquele entardecer dourado e insólido”.
JACK KEROUAC – ‘On The Road’

Uma das maiores dificuldades aqui até agora tem sido o horário. Ainda estamos sofrendo com o fuso horário. Isto significa noites mal dormidas e dias cansados. Ontem passamos o dia na favela de Dharavi, o guia estava previsto chegar no hotel às 8:30. Eu devo ter acordado umas 4 da manhã e não consegui dormir mais. Da cama consigo ver a janela do quarto, que é bem silencioso. Já posso distinguir a dinâmica da cidade amanhecendo. Primeiro vem a claridade que vai chegando aos poucos, as primeiras buzinas -primeira de tantas, importante dizer - e logo em seguida começo a ouvir o barulho da pomba que toda manhã aparece na janela do banheiro. No meio de tudo isso organizo a minha vida. Um pensamento que na angústia da insônia prometo ser o último, que da lugar a um outro e assim até eu visitar todas as minhas preocupações. Na mesa do café da manhã descubro que o Érico está passando pela mesma coisa... Nesta madrugada resolvi fazer um balanço sobre a fotografia, sobre o que tenho feito para poder deixar minhas intenções fluírem. Noite produtiva esta. Mumbai nascendo e eu aqui em pensamentos profundos...

No táxi, em direção a Dharavi, Ram, nosso guia, ia nos explicando o que nos aguardava. Teríamos que ter muita paciência para fotografar. Só depois que tivéssemos o consentimento das pessoas ali. Confesso que quando saímos do táxi eu não tinha visto nada muito diferente do que temos encontrado aqui em Mumbai. Fomos primeiro numa espécie de associação para defesa das mulheres. Duas freiras nos atenderam numa sala com um ventilador gigante no teto. Pensei em quase desejar passar mais tempo naquela sala... Depois de algumas perguntas saímos para o calor da manha que já ia alta, com a sensação de que não seria uma tarefa fácil. Parece que todos insistiam de que não teríamos muita sorte em captar imagens.
A luz já estava dura demais e partimos para uma viagem mais de reconhecimento e integração com as pessoas. O Guia nos explicou que 60% dos habitantes da cidade vivem em favelas ou nas ruas e que elas ocupam uma área de não mais que 6%, ou seja uma estatística absurda que começou a nos mostrar as condições em que eles vivem. Ram nos disse também que Mumbai é conhecida por Slumbai, mistura das palavras slum, do inglês favela e Mumbai. Pois é, os indianos também fazem este tipo de piadinhas.

A única favela que eu tinha visitado até então, foi na década de 90 em Curitiba. Mas este dia me ajudou a entender um pouco mais o povo indiano. A primeira impressão que tive quando cheguei aqui foi da quase falta de estresse e da paz encantadora transmitida pelas pessoas. Como vocês viram no primeiro post, fiquei muito encantado com o que encontrei naquele trem na volta do trabalho na segunda-feira.

Passamos o dia andando pela favela e não posso dizer que tive um olhar se quer de hostilidade. Todos foram muito solícitos, gentis. Muito deles pediram para ser fotografados, outros diziam que não, mas de uma maneira muito carinhosa. Andamos por todos os lugares que nossos pés puderam ir. Entramos em vários barracos onde encontramos pessoas trabalhando, muitos deles em materiais de reciclagem. Num deles, tinha um galpão cheio de garrafas pets. No meio deste lugar vi um rapaz e no fundo três mulheres e um senhor separando os materiais. Eles me convidaram a entrar e fui indo. Quando percebi estava afundado até o joelho no meio das garrafas, algumas delas ainda estavam molhadas. Tenho muito medo de rato. Uma fobia digamos assim. Temos encontrado muitos aqui, inclusive ontem vi o maior de toda minha vida e ele vinha seguido de três outros, todos do mesmo tamanho. Por um breve segundo pensei que poderia ter algum rato no meio daquelas garrafas, mas eu estava tão concentrado e determinado em poder conhecer, saber como vivem aquelas pessoas, que nada seria capaz de me tirar daquele estado.

Nosso guia a esta hora já estava sentado em baixo de uma árvore e devia pensar: esses caras são malucos, e nos deixou livre, pudemos então mergulhar fundo no nosso propósito. Eu e o Érico temos interesses muito parecido e tem sido uma viagem ótima. Quando estamos trabalhando é como se estivéssemos em transe, um quase já consegue adivinhar o pensamento do outro e, naturalmente, dar um suporte.

Com certeza foi o lugar onde encontrei o ser humano vivendo em condições mais desumanas. Peço desculpa, mas vocês não encontrarão isso nas minhas imagens. Por mais que eu quisesse seria impossível retratar a miséria, aquela miséria estampada no rosto. E eu preferia deixar de fazer o que eu mais gosto na vida, do que ter que explorar alguém, a imagem de alguém. Não é pra isso que vim de tão longe e afinal de contas todo mundo é capaz de saber qual a cara do sofrimento.

Prefiro contar que mesmo andando por um dos lugares mais pobres da Índia não corri nenhum risco de ser assaltado; que apertei a mão de quase todas as pessoas que fotografei; que sentei ao lado delas e dei o melhor dos meus sorrisos, recebi, com certeza, um sorriso sincero deles; que quando percebia qualquer tipo de incômodo com minha presença, saia rápido, me desculpando; que vi pessoas trabalhando juntas, se ajudando, mesmo que a menos de 10 metros de um dos rios mais podres que se pode existir. Enfim, a Índia tem me ensinado que o mundo está mesmo muito complicado, que pode ficar ainda mais difícil viver aqui, mas que algo bom pode ser salvo no meio desse caos todo e é sempre a partir do ser humano que isso acontece.

13 comentários:

Art in Shapes disse...

RÊ, me arrepiei com seu texto! Quantas imagens e emoções... Olha, muito mais que trabalho, a viagem vai ser um puta aprendizado!

beijos

Dani
1daystand.blogspot.com

Renato Negrão disse...

Está sendo mesmo um aprendizado muito grande. Como já disse aqui espero mesmo voltar e ser uma pessoa melhor do que tenho sido até então... espero conseguir.
Bjs e obrigado.

Felipe Prando disse...

E Ae Negrão!!!
Tô de botuca aqui no Blog. Manda ver ae, aproveita a viagem.
As fotografias postadas estão muito massa.
abc
Felipe

PS: é verdade que você não voltará pq viverá numa comunidade de um guru espiritual?!?

Felipe Prando disse...

ahhhhhhhh

e aprova o meu comentário ae, hahah

Unknown disse...

linda narração! eu gosto de sua sinceridade e cuidado com quem encontra

Anônimo disse...

Meu grande amigo,
Tudo o que você tem retratado desde que chegou aí e, principalmente, este seu texto me emocionaram profundamente. A última frase deste seu post me contagiou com a sua esperança, com o respeito que você tem pelo "Outro". Que bonito, que verdadeiro. Acho que nunca vou esquecer a descrição tão humana que você fez deste lugar tão difícil...

O que você disse me fez lembrar de uma frase do Saramago. "Até escrever o `O Evangelho Segundo Jesus Cristo´, eu estive descrevendo uma estátua. A partir de então, tratei de me introduzir na pedra".
Um beijo grande, amigo. Obrigada pelo email lindo que você mandou.
(A sua viagem é o livro que leio agora todos os dias quando acordo)
Cris

Unknown disse...

Re,que lindo!
Vc está se superando.
Amei as fotos e o texto trasnpira emoção pura.Simplesmente maravilhoso.
Deus continue te abençoando e usando você ,através de simples gestos de carinho, consideração e respeito ao ser humano,para abençoar outros ou todos que cruzarem seu caminho durante este rico período de trabalho e auto conhecimento.
Bj enorme

Renato Negrão disse...

Santiago, obrigado, vindo de você que é um super escritor, fico mt feliz.

Cris, vc não sabe como é bom ter voce como minha grande amiga. Obrigado por tudo, sempre, há mais de 15 anos ao meu lado. TE AMO!!

Kell, fico feliz com o elogio, obrigado, mas quem é voce, rsrsrsrs?

Anônimo disse...

Olá Renato. Na reportagem Dharavi, a maior favela... Vc disse q viu muita miséria e q nao iria publicar as fotos por nao querer explorar a miséria deles. Respeito, mas nao concordo. Penso q deveria mostrar de uma maneira q a gente entendesse q vc nao está explorando, mas sim fazendo um trabalho jornalístico sério. Realidade é realidade. Na verdade fiquei curioso. Me pareceu também um pouco de rebeldia nas suas palavras. Abraçao
Essa nao precisa publicar
Chao

Renato Negrão disse...

Olá, eu não teria motivo para não postar seu comentário, sua sugestão. É´muito importante saber o que vocês estão realmente pensando sobre o trabalho. Não mostrei as fotos sobre a miséria lá, por que na verdade eu não as fiz. A fotografia tem um poder, ela tira algo de alguém, no caso a imagem e eu só sei fotografar respeitando isso. Este é um trabalho pautado por mim, eu sei e consigo fazer isso, infelizmente não vou agradar todo mundo, mas é a maneira como sei fazer. Fiz umas outras imagens, das meninas que estão em 'Cenas de rua 2' e fui criticado por sugerir uma comoção que não existe. To tentando mostrar a vocês uma Índia que está me tocando, fazendo sentindo pra mim.
Continue vendo o blog, mande seus comentários, como eu disse é importande saber a opinião de todos. Espero poder te agradra outras vezes. Obrigado pela sinceridade.

Aline disse...

Oi Renato.
Esse post me emocionou muito por várias razões. Espero que os seus medos sempre sejam pequenos diante de uma nova história e que o seu olhar continue sabendo respeitar o limite do outro.
Mais uma vez parabéns!
Abs,
Aline.

ANNA disse...

As vezes fico muito na fissura de fotografar a acabo deixando de realmente "enxergar" o que estou fotografando.

Mas queria muito ver suas fotos. As que fez. As que não fez, fico imaginando...

Renato Negrão disse...

Anna, fiquei muito feliz com seus comentários, obrigado pelos elogios, foi uma viagem fantástica e acho que vcs puderam perceber isso aqui no blog. Já faz quase dois meses que voltei e ainda estou sentindo os efeitos positivos dessa aventura.
Estou tentando fazer uma exposição e mostrar mais fotos, mas podemos combinar e te mostro sim, com prazer.

Abraço,