quinta-feira, 5 de julho de 2018

O que Vera Resende e Pavel Ershov tem em comum?

A fotografia tem movimentos surpreendentes, é uma linguagem que aproxima pessoas de culturas diferentes, que não precisa de tradução, basta um olhar e a comunicação acontece. Dias atrás, procurando trabalhos de fotógrafos no Instagram - está plataforma incrível para descoberta de novos talentos - me deparei com uma foto, de um Russo que me lembrou muito o ensaio “O que eu Deixei pra trás”, da fotógrafa brasileira Vera Resende.
Como curador, eu já havia mostrado estas imagens em exposições em São Paulo, na Galeria Olido e em Montreal, no Canadá. O ensaio autoral em questão foi feito por Vera para falar sobre o sentimento de ter deixado, quando criança, uma vida pacata no interior e ter ido morar na grande metrópole de São Paulo.
De maneira bastante criativa, Resende pegou um retrovisor, prendeu a um tripé e fotografou a paisagem bucolica do interior de Minas Gerais, Terra Natal de seu esposo.
O que vemos na imagem é um jogo que coloca em julgamento o caráter bidimensional da imagem fotográfica, a câmera, apontada para uma paisagem, onde o retrovisor está no centro, brinca com a ideia de nos mostrar o que não poderia ser visto, por está atrás da câmera.
A sensação é melancólica, de alguém que está indo embora para nunca mais voltar, de que foi arrancada de uma vida feliz e parte para uma aventura totalmente desconhecida nas grandes cidades. Simbólicamente, a última fotografia do ensaio o retrovisor aparece quebrado, deixando claro o rompimento com o passado.
É justamente este sentimento que encontrei nas imagens de Pavel, um jovem fotógrafo Russo, radicado em Moscou e que é, assumidamente, especialista em fotografias com cameras de celulares.
Diferente de Vera Resende, que usa o espelho do retrovisor, um aparato, digamos assim mais analógico, Pavel usa o próprio celular para mostrar o reflexo do que ficou pra trás. Exatamente a mesma ideia da brasileira.
A Rússia tem muitas coisas parecidas com o Brasil, ambos são grandes países, passam por crises econômicas e políticas que marcam suas histórias. Tanto no Brasil como na Rússia muita gente foi obrigada a deixar os pequenos centros e mudar para as grandes cidades a procura de estudo e trabalho.
O que me encanta nisto tudo é que ambos os fotógrafos nunca se falaram, uma está no Brasil, outro na Rússia há milhares de quilômetros de distância e os dois tiveram a mesma ideia e usaram a fotografia, cada um ao seu tempo, para falar sobre suas relações com memória, saudades, contato com a natureza, enfim, tratar de suas questões no mundo.
Prestes a montar uma exposição com o trabalho de fotógrafos brasileiros em Moscou - aproveitando os olhares do mundo para a capital Russa, entrei em contato com o fotógrafo xxx para convidá-lo para fazer parte do grupo, com 3 fotos desta série. O que aconteceu entre ele aceitar e o primeiro contato foi uma história a parte, esta precisando da linguagem escrita para acontecer.
Primeiro tentei em inglês, usando a ferramenta “enviar mensagem” que o instagram oferece. Não houve resposta. Depois passei a curtir várias fotos dele - um perfil bastante conhecido, com mais de 20 mil seguidores. Tentando me fazer notar, ele respondeu, mas em Russo.
Pedi então para uma amiga de Moscou, que mora no Brasil, fazer a traduzir. Ele estava desconfiado quanto as minhas intenções, mas no fim aceitou fazer parte da exposição coletiva.
Cheguei hoje em Moscou, depois de horas de voo, dois dias no Qatar, para fotografar os estádios da próxima Copa do Mundo, a de 2022. Pelo pouco que vi, será uma grande aventura passar as próximas semanas neste que é o maior país, em extensão territorial, da Terra.
Sábado abriremos a exposição que dei o nome de “Brazil Throught the Less”, em uma charmosa galeria - “Exposed” a poucas quadras da Praça Vermelha.
Além do trabalho de Vera Resende e Pavel Ershov, nosso convidado especial, temos mais 17 fotógrafos brasileiros. Alguns deles bastante conhecidos, como o documentarista Érico Hiller, a artista Ivana Panizzi, a paulistana Malu Mesquita, que tem um belo trabalho sobre as grandes cidades. Outros, são ex-alunos da Faculdade Senac, onde orgulhosamente leciono, a primeira faculdade da América Latina a ter um curso de fotografia e onde temos uma biblioteca especializada no assunto de deixar muita instituição internacionais de queixo caído.
A fotografia une pessoas, como disse Vilém Flusser em uma de suas inúmeras reflexões sobre a imagem, a linguagem imagética tem um apelo circular, diferente da escrita, que é linear, sendo circular, ela atua em diferentes áreas da percepção, o que dá um caráter mais subjetivo a aberto para as interpretações.
Fazer fotografia, falar sobre fotografia, carregar imagens mundo a fora, é quase uma missão que tem me motivado. Vera Resende não pode vir para abertura, mas tenho certeza que ela está feliz, acompanhando tudo em tempo real, pelas redes socias e seu ‘amigo’, o fotógrafo Russo estará presente e promete trazer muitos outros fotógrafos Russos para ver as imagens dos brasileiros.
E eu sigo por aqui, movido por esta grande paixão, que é explorar o mundo com uma câmera pendurada no pescoço uma uma série de imagens embaixo do braço, por que não tem graça nenhuma fazer isso sozinho.

terça-feira, 21 de outubro de 2014

A difícil tarefa de chegar perto.


Ontem acordei bem cedo. Tenho dormido com as cortinas abertas. Além da vista do 21º andar ser magnífica, eu sei se o tempo está bom ao amanhecer e hoje foi o dia mais ensolarado até agora. Antes das 7h já estava nas ruas e fui até o bairro “Old Montreal”.
Antes de começar a fotografar parei em um café, além de sono, eu estava sentindo muito frio. É incrível como, às vezes, a única coisa que precisamos é um bom café da manhã, meu ânimo melhorou bastante e voltei ao meu ofício. Hoje estava determinado a me aproximar das pessoas. Após alguns dias em Montreal, estava na hora de chegar mais perto. Sempre, quando viajo, gosto de fazer isso, acaba sendo quase como uma brincadeira - fotografar pessoas desconhecidas, sem pedir autorização.
Comecei a andar pelo bairro e vi todo mundo sério, indo trabalhar. A semana começava corrida, como em qualquer outra grande cidade do mundo.
Caminhei até o porto e encontrei alguns jovens vestidos de zumbis. Eles fazem um show na região, já tinha visto na noite anterior, quando andávamos pela área. Passei por eles e me senti intimidado. Não sei explicar o motivo, mas comecei a arrumar várias desculpas para não fotografá-los. Segui o caminho mas fiquei muito incomodado. A seguir, o diálogo interno que travei comigo mesmo:
-volta lá caramba!
-Será?
-Claro, vc não vive dizendo pro seus alunos que tem que se aproximar das pessoas?
-Mas eles são zumbis!!
-Halloween está chegando e você sabe que é uma data especial pros canadenses!
-Ah, que saco, olha que gaivota bonita lá!!
-Não, volta e faz seu trabalho!
Como muitos fotógrafos, eu também não gosto de pedir para fotografar, acho que perde a naturalidade. Voltei pro tentar a sorte com os zumbis. Olhei até ser visto, dei um sorriso tímido, e dois deles se aproximaram. Peguei a câmera, que já estava com a fotometria certa - é claro!, e comecei a clicar. Fiz isso com calma, poucos cliques e mais tentativas de conexão. Eles entraram na brincadeira e começaram a fazer a performance. Isso tudo sem trocar uma única palavra. Terminei, agradeci com outro sorriso, esse mais largo, pois eu estava aliviado. Saí dali e encontrei um grupo de orientais fotografando. Cheguei bem próximo e, com calma, fotografei…
Com a boa sensação de dever cumprido sai pelas ruas a procura de mais pessoas. Terminei o dia no Ateliê de um jovem estilista, que está despontando na moda de Montreal. A cidade é um importante polo fashion do Canadá. Chegando lá encontrei um livro do fotógrafo alemão August Sander, um grande retratista e que marcou toda uma geração de pessoas entre as duas grande Guerras. Em suas fotos vemos pessoas, há muito desaparecidas, nos encarando, marcando sua presença na Terra. Nada mal para terminar um dia em que passei olhando e registrando desconhecidos nas ruas de Montreal.

sábado, 18 de outubro de 2014

flâneur, iPhones e outras considerações.


Dizem que tive sorte com o clima, justo nesta semana está fazendo o que os canadenses chamam de "India Summer", quando o tempo esquenta de repente. Apesar de quente, tem chovido bastante.
Ontem coloquei o despertador para me chamar às 6 da manhã, a previsão dizia que o sol sairia às 7, então queria estar na rua. Quando abri as curtias vi um tempo feio e chovendo. Mesmo tendo ido dormir tarde, depois de uma noitada celebrando o projeto com o Luc e alguns amigos, eu estava animado demais para ficar na cama e sai assim mesmo.
Existe uma palavra em francês que os fotógrafos de ruas adoram usar - flâneur. Que significa sair sem rumo pelas ruas, sentindo o espírito da cidade.
Enquanto eu andava pelas ruas de Montreal, estava pensando nisso, no prazer que a fotografia traz pra tantas pessoas, ela é uma possibilidade para você estar no mundo de um jeito diferente, se conectar com pessoas e coisas de um jeito que só ela permite. Ela nos autoriza a chegar perto a ter uma razão para realizar o que nos motiva.
Mas o mundo está mudando muito. Existe uma diferença grande entre o flâneur de hoje e o de alguns anos atrás. A principal diferença pra mim é o fato de estarmos acostumado a falta de tempo. Acostumado sim, pois até quando podemos fazer as coisas com mais calma, parece que algo está fora de ordem.
Pensava em tudo isso quando começou a chover forte e entrei no primeiro café que encontrei. Por sorte, tinha um lugar perto da janela. Depois de me esquentar comecei a, como dizem os ingleses, "watching people". A janela tinha um formado interessante que logo ajustei ao frame do meu iPhone (muito mais prático que a pesada câmera). De repente percebi que tinha algo novo acontecendo ali. Um jeito novo (bem, não tão novo assim... rs) do fotógrafo se conectar com a cidade.
Hoje todo mundo fotografa com smart phones. As fotos são armazenadas e quando vc visita seu album encontra um monte de coisas parecidas. Isso é uma outra imagem, se você pensar que no celular enquanto um enquadramento. Tive então a ideia de fazer dessas fotos da janela, uma única imagem.
O fotógrafo do século passado saia pela cidade e esperava as coisas acontecerem. Tinha tempo suficiente pra aguardar tudo se alinhar - mente, olho, coração. Como gostava o mestre Bresson. Agora não dá não, tá tudo girando forte e precisamos enfrentar as ruas de um outro jeito.

quinta-feira, 16 de outubro de 2014

Uma semana de outono em plena primavera


Passar uma semana fazendo "Street Photography" em Montreal, no Canadá. Foi essa a proposta de trabalho que recebi para o projeto "Olhares Cruzados". Recomendações? - Vá a Montreal e fotografe o que te chamar a atenção!
Quando o convite chegou, demorei a acreditar que fosse isso mesmo. Peraí, ainda existe esse tipo de fotografia romântica onde o que vale é o ensaio confessional do fotógrafo?
Sim, existe, e se é um sonho eu estou no meio dele e estou tratando de aproveitar ao máximo.
Cheguei em Montreal, depois de uma conexão tumultuadíssma em Toronto. Mais uma vez eu fui confundido com um terrorista (??) - em NY aconteceu o mesmo. Fui levado para uma sala de entrevistas, me trataram como se eu fosse um ser perigoso, perguntaram coisas do tipo: qual a capital do Brasil? e depois de eu tirar quase toda a roupa de tanto calor que fiquei, me liberaram. Ainda bem, pois a mulher me olhava tão feio, que eu já estava acreditando ser um perigo pra América do Norte!!
Corri feito um doido pra pegar a conexão e depois de uma hora cheguei em Montreal.
No aeroporto, meu amigo Luc - o outro fotógrafo do projeto - estava me esperando. Nada como, depois de um susto, ter alguém pra cuidar de você, e ele faz isso como ninguém, me emprestou um telefone, imprimiu mapas, anotações por escrito, a previsão do tempo para todos os dias em que estarei aqui, e me deixou no hotel antes de ir pro trabalho.
Comecei na fotografia no finalzinho dos anos 1990, quando morava em Londres. Meu primeiro professor foi um italiano romântico que durante as sessões de laboratório no quarto escuro, falava de suas viagens pelo mundo. Não sei se devido ao efeito dos químicos eu viajava junto com ele.
Agora, uma década e meia depois, estou aqui como fotógrafo contratado para um trabalho de "street Photography". Já fiz isso outras vezes, este blog está cheio de histórias assim, mas sempre parece ser especial. Quando eu soube deste projeto revistei os grandes fotógrafos - nomes que sempre admirei. O primeiro foi Sergio Larrain, fotógrafo preferido de minha amiga/irmã, a também fotógrafa Milla Jung. Ele parou de fotografar há anos, mas o que fez é coisa de mestre. Até hoje me emociono com suas fotos de Londres nos anos 1960. Depois segui a lista dos clássicos - Robert Frank, Diane Arbus...
Agora estou aqui em um café na Rue St. Catherine. Enquanto chovia fiz amizade com o garçon, um indiano que vive há anos no Canadá. Ele encheu tantas vezes minha xícara de café que me sinto ligadaço!
O sol acaba de sair e as ruas me esperam! Até!!!

domingo, 5 de maio de 2013

CAMINHOS TORTOS E MOVEDIÇOS

Eu gostaria de compartilhar este texto do José Castello sobre o processo criativo dos escritores. Ele foi um presente que uma grande fotógrafa brasileira, a Milla Jung, me deu no natal de 2007. Apesar de ser sobre literatura, gera reflexões valiosas sobre a fotografia como forma de expressão da alma humana, principalmente pra nos lembrar que ela precisa cada vez mais de espíritos livres e não de burocratas. Boa leitura!!!

CAMINHOS TORTOS E MOVEDIÇOS
O desafio de aventurar-se pela criação literária requer desvencilhar-se de fórmulas e estar sujeito ao inesperado, à incerteza e ao imprevisível.
José Castello • Curitiba – PR
Oficinas literárias se disseminam pelo país. Eu mesmo, sempre cheio de dúvidas, comecei a coordenar oficinas regulares em Curitiba. Elas respondem a uma demanda cada vez mais freqüente daqueles que se interessam pela literatura e que desejam, ou se iniciam, escrever. Mas será possível ensinar a escrever? Em minhas pequenas oficinas literárias — que prefiro chamar de "oficinas da imaginação" — algumas pessoas me pedem isso. É função da escola, e não de oficinas livres, transmitir o conhecimento e o manejo da língua. Portanto, oficinas não ensinam a escrever.
Alguns, ainda mais iludidos, acreditam que oficinas literárias formam escritores. Dito de outra forma: que, se não ensinam português, ensinam a escrever textos literários. Nem o mais brilhante dos mestres tem o poder de transformar alguém em escritor. A arte de escrever não comporta transmissão. Se a ideia é domesticar a escrita alheia, a literatura passa a léguas disso. Pode-se, no máximo, provocar, incitar, apostar numa inquietação. Se digo que literatura não se ensina é porque, para escrever textos criativos, uma pessoa precisa bem mais do que uma dedicada e metódica educação. É preciso, antes, que algo se escreva dentro dela. A literatura começa com uma experiência de ruminação interior. É uma aventura pessoal e secreta. Não comporta adestramento, não é uma técnica - como o manejo de uma máquina, ou o cultivo de uma fazenda - que se conquista pelo esforço e pela repetição.
Um grande escritor como Cristovão Tezza relata, sempre, o estado necessário de meditação profunda, de contemplação, que antecede e prepara sua escrita. Quando começa a escrever um livro, Tezza se põe a perambular pela casa, horas, dias, semanas a fio. Num estado que se assemelha à divagação, remói ideias, visões imprecisas, situações. Quando, enfim, se senta para escrever, muitas vezes não produz, ao longo de todo um dia, mais que meia dúzia de linhas. Sempre à mão, em um caderno, o que sublinha a posição fundamental de eterno aprendiz, ele se contenta em gaguejar algumas palavras. Não importa que escreva só um punhado de frases: interessa, sim, que, numa espécie de gestação abstrata, incorpórea, uma narrativa se forma, lenta, dentro dele.
Um escritor não chega a decidir que vai escrever um romance, ou um poema. Tampouco controla o ritmo e o tom do que escreve. Algo atua sobre ele, dentro dele, através dele - e à sua revelia. Há um elemento autônomo, e crucial, sempre em jogo. Se a literatura é uma carruagem, o escritor não é o cocheiro que chicota os cavalos. O escritor é o passageiro que se acomoda solitário na cabine, desprotegido, encoberto por espessas cortinas, carregado sabe lá para onde. É a conexão com esse desconhecimento, e não a prática de alguma arte de "bem escrever", que dele faz um escritor.
Borges desprezava seu primeiro conto, Homem da esquina rosada que, como lembrou um dia, escreveu com grande cuidado, "lendo em voz alta cada página". Em outras palavras: com o fervor de um aluno exemplar. Por uma premonição misteriosa, que confundiu com o pudor, preferiu assiná-lo não com o próprio nome, mas como Francisco Bustos, o nome de um de seus bisavôs. Essa opção obscura pelo nome alheio e antigo pode ser tomada como um sinal de que, de alguma forma, mesmo "escrevendo bem", Borges escreveu Homem da esquina rosada para cumprir uma incitação externa, e não interna. Para atender ao desejo de outro.
Mais tarde, entendeu que o verdadeiro início de sua carreira literária estava não nesse conto, mas numa série de exercícios que escreveu pouco depois, e que sequer chegava a considerar literatura. Ele os chamou de História universal da infâmia e os publicou na revista Crítica, entre 1933 e 34. Esses exercícios eram pseudo-ensaios, eram falsificações, não cumpriam as exigências clássicas do conto. Parecia claro: não eram contos. Para escrevê-los, Borges lia sobre a vida de pessoas conhecidas e, em seguida, as deformava. Julgava que fossem simples jogos de espírito, nada mais que isso.
"Por alguma ironia, Homem da esquina rosada era realmente um conto, enquanto esses exercícios assumiam a forma de falsificações e de pseudo-ensaios", anotou, mais tarde, em sua Autobiografia. Contudo, é no campo do "pseudo", isto é, do falso, que a literatura (a ficção) se faz. Tira-se disso que é no erro, no desvio, é quando escapa de todo ensinamento, e não no cumprimento severo das normas literárias e dos cânones, que um escritor se torna escritor. Ninguém se educa para ser um escritor; a literatura está mais próxima de uma deseducação do que de uma educação.
Ouvir a própria voz
Com esses exercícios que na verdade são contos geniais, Borges encontrou sua própria voz, e se tornou um grande ficcionista. Encontrar sua voz particular é a grande tarefa do escritor, e não cumprir regras gramaticais, praticar um português impecável, ou exibir um estilo elegante. "Ninguém se torna um escritor sem conseguir, antes disso, ouvir a própria voz", diz o ensaísta inglês Alfred Alvarez em A voz do escritor, belo ensaio traduzido recentemente pela Civilização Brasileira. Alvarez é crítico literário do The Observer, de Londres, e professor aposentado em Oxford.
Trata-se de uma experiência radical, que se prolonga por toda a vida e que, em alguns casos extremos, coloca a própria vida em risco. Pense-se na loucura amarga de Antonin Artaud, na solidão superlotada de Fernando Pessoa, nas vozes que perseguiam Virginia Woolf, na vida à deriva de Joseph Conrad. "Para um escritor, a voz é um problema que nunca o deixa em paz", diz Alvarez. Mais que problema, é um enigma, que nunca chega a resolver, e com o qual o escritor se vê obrigado a lidar por todos os seus dias. Como ouvir a própria voz? Não existem instrumentos, nem exercícios, ou mesmo rituais, que levem a isso. É coisa que não se ensina, que um escritor aprende consigo mesmo, ou não aprende.
Alerta Alvarez que ter uma voz não é a mesma coisa que ter um estilo. Isso, ter um estilo, que cheira mais à alta costura que a literatura, é coisa que qualquer escrevente pode cobiçar. Pior: aqueles que chegam a "ter um estilo", em grande parte dos casos, se asfixiam em sua própria couraça, o estilo se torna uma camisa-de-força. Até porque um estilo - como um penteado, ou uma marca de automóvel - adota-se, vem de fora. Um estilo é uma casca, uma performance que se aprecia, ou se rejeita, enquanto uma voz não chega a ser uma escolha, uma voz é uma maneira inconsciente de soar.
Encontra-se a própria voz pelos caminhos mais inesperados. Para ser escritor, William Faulkner teve de trabalhar como carpinteiro, pintor de paredes e chefe dos correios. Franz Kafka mofou, por anos a fio, em um escritório de seguros. Orides Fontela se viu com a miséria, a penúria mais extrema. Joseph Conrad levou uma dura vida de marujo. Jean Genet converteu-se em ladrão. François Villon, em assassino. José Saramago passou anos, décadas inteiras dirigindo jornais. Ernesto Sabato formou-se em física e matemática. Hilda Hilst se comunicou com espíritos através de ondas de rádio. Não existem caminhos retos que conduzam à literatura, eles são sempre tortos e movediços.
E o que distingue a voz própria? O fato de ela ser diferente de todas as outras, de não se parecer com nenhuma. Então, como se pode ensinar isso? Simplesmente não se pode ensinar. Pode-se, no máximo, atravessar experiências que favoreçam esse encontro. Experiências literárias, ou seja, leituras. Ler e escrever, e ler e escrever, não para acertar,mas para cavar. Experiências que expandam o olhar e ampliem o timbre da voz de quem escreve. Que alarguem os limites - chegamos à palavra chave - de sua imaginação.
Daí eu preferir pensar em "oficinas da imaginação". Assim como não se ensina a escrever, tampouco se ensina a imaginar. Mas a imaginação pode ser estimulada, atiçada, e mesmo, e infelizmente, desperdiçada. Ao preferir a imaginação, o que se trabalha não é a língua, nem a história da literatura, e muito menos o "escrever bem", ou qualquer outro valor fixo. Trabalha-se, ao contrário, a diversidade, a irregularidade, o desvio e o susto. "A gente faz algo, através de nossa imaginação, que não é uma representação, mas sim algo inteiramente novo e mais verdadeiro que qualquer coisa verdadeira", descreveu, certa vez, Ernest Hemingway. "Eis por que se escreve, e não por qualquer outra razão que se saiba."
A formulação de Hemingway é clara: um escritor parte daquilo que carrega dentro de si e que só com muita dificuldade, e alguma decepção, consegue encontrar. A decepção é outro elemento chave. Como nunca escrevemos aquilo que planejamos, ou desejamos escrever, como nossa escrita está sempre muito aquém, ou muito além de nossos planos, o escritor precisa suportar o desapontamento, imenso, que a literatura provoca. Nenhum escritor está satisfeito com o que escreve. Assim como estranhamos nossa voz quando a ouvimos em um gravador, ou repudiamos nossa imagem quando a vemos numa fotografia, também assim nossa escrita parece, quase sempre, imperfeita e alheia. E aqui é preciso dizer com todas as letras: ela realmente é.
Até porque, como observou mais de uma vez o argentino Julio Cortázar, a literatura não tem leis. Se há uma coisa que a literatura não apenas não comporta, mas sobretudo não suporta, é a norma. Então, como transmitir, como ensinar leis, normas inexistentes? "O romance é um grande baú, é a possibilidade de expressar uma multiplicidade de conteúdos com uma liberdade enorme", disse Cortázar numa longa entrevista ao amigo Ernesto Gonzáles Bermejo, publicada no Brasil pela Jorge Zahar. "Na realidade, o romance não tem leis, a não ser a de impedir que a lei da gravidade entre em ação e o livro caia das mãos do leitor."
Única lei: seduzir o leitor. Mas esta é uma lei sem forma, e que não pode ser fixada em letras, já que para cada leitor, a sedução é uma coisa diferente. A literatura, diz Cortázar em outro momento, vem mais de uma "experiência de desajuste", isto é, mais de um desarranjo, de uma desordem, do que de um bom funcionamento. Diz ele ainda: "Em determinados momentos, as coisas se apartam de mim, se movem, correm para um lado e, então, desse oco, dessa espécie de interstício que eu não sei exatamente o que é, surge um estímulo que, em muitos casos, me leva a escrever". O escritor, observa também, deve saber suportar uma certa "suspensão da incredulidade". Ao contrário do cientista, que está sempre a criticar a realidade e os princípios que a governam, o escritor deve acreditar no que vê. Um escritor precisa aceitar fatos incongruentes, presenças incertas e verdades improváveis. Ele deve suportar a perplexidade e a incompreensão, matérias mais nobres da literatura, ou só escreverá coisas previsíveis.
Recorda Cortázar que, enquanto escrevia os capítulos mais difíceis de O jogo da amarelinha, trabalhava em tal estado de porosidade e de desamparo, sentia-se tão frágil e exposto que dependia da mulher para fazer as coisas mais banais. "Ela me dava colo, me levava para tomar um pouco de sopa", recorda. "Eu estava completamente dominado. Comer, tomar uma sopa, eram as atividades literárias. A outra coisa - a literatura - era o verdadeiro." A literatura é tão maior do que quem a escreve que aquele que escreve, sob seu peso, às vezes até se infantiliza.
Como se ensina isso? Antes ainda: é mesmo o caso de ensinar – de macaquear? Na moda, se todos passam a usar calças com a cintura baixa, basta usar também. Na ciência, conjunto organizado de conhecimentos, o que importa é a demonstração - é saber provar o que se diz. Na religião, o mais importante é reproduzir, letra a letra, sem qualquer contestação, as palavras dos livros sagrados. A filosofia não se faz sem um conjunto de princípios e de conceitos manobrados com rigor. Mas, e a literatura? Tudo o que se pode fazer é trabalhar com leituras e mais leituras, rascunhos e mais rascunhos, criando assim uma atmosfera de intimidade e de liberdade interior, densa de tal modo que facilite (mas nada é garantido, pois não existem regras) o aparecimento da escrita.
Nunca é demais repetir a sentença genial de Clarice Lispector: "Não sou eu quem escrevo, são meus livros que me escrevem". Tal experiência não comporta transmissão, ou adestramento. Não existem escritores bem formados, ou bem habilitados. Muitos psicanalistas acreditam na existência, e na boa prática, de uma psicanálise-didática; mas pensar numa literatura-didática é um absoluto contra-senso. Até existem escreventes bem adestrados, com técnica afiada e saberes na ponta da língua: mas escritores, a rigor, não são. Bons escreventes, eles se contentam em cumprir o legado da tradição, em criticar o passado, em dialogar com mestres e reverenciar doutrinas. Literatura isso não é. Fazem lembrar a vida medíocre de um Bartleby, o célebre escrivão criado por Herman Melville, ou do nosso melancólico amanuense Belmiro, de Cyro dos Anjos. Bartleby foi o mais sábio: um dia descobriu que, a qualquer pedido de performance, o mais correto era responder: "Acho melhor não". A partir dele, pode-se entender o sábio silêncio daqueles escritores taciturnos que o catalão Enrique Villa-Matas retratou em seu Bartleby & Cia.
O real e a literatura
Outro argentino, Ricardo Piglia, aponta a relação estreita entre os movimentos do real (esse grande fundo de susto e desconhecimento que está encoberto pelo que chamamos, trivialmente, de realidade) e a literatura. Numa das cenas mais comoventes de Crime e castigo, lembra Piglia, Dostoiévski relata um sonho de seu protagonista, Raskólnikov. No pesadelo, Raskólnikov vê um grupo de camponeses alcoolizados que surram um cavalo até a morte. Em desespero, o rapaz se abraça ao cavalo agonizante e lhe dá um beijo. O romance de Dostoiévski é de 1866. Duas décadas depois, em 3 de janeiro de 1888, o filósofo Friedrich Nietzsche, um leitor apaixonado de Dostoiévski, repetiu (encenou) a cena de Raskólnikov. Numa rua de Turim, Itália, ele se abraçou chorando a um cavalo que um cocheiro castigava brutalmente, e depois o beijou. A citação de Dostoiévski, transformada em ato, é para alguns o início da loucura de Nietzsche; na verdade, é o apogeu de sua filosofia. E por que não dizer: de sua poesia.
No mesmo ano de 1888, surgem dois dos livros mais radicais de Nietzsche: O crepúsculo dos ídolos e O Anti-Cristo. Sua filosofia, embora talhada em forte lastro crítico, não se baseia em experiências livrescas, mas em uma dolorosa experiência pessoal. Em vez de manejar conceitos filosóficos, Nietzsche fez de suas idéias um teatro e, com isso, mais que fazer filosofia, fez poesia. Ele "sofria" de pensamentos, era objeto e também personagem (vítima) deles - exatamente como o impulso insano para escrever fez de Clarice Lispector não só escritora mas, sobretudo, uma personagem, uma vítima de sua literatura.
Franz Kafka gostava de citar um trecho da correspondência de Gustave Flaubert: "Vivo absolutamente como uma ostra. O meu romance é a rocha à qual me agrilhôo e não sei nada do que se passa no mundo". Em seus diários, Kafka anota uma idéia parecida: "Repouso em cima do meu romance tal como uma estátua que olha para a longe repousa sobre o soco". Tanto Flaubert, como Kafka se referem à relação enviesada, sinistra, que os escritores têm com a literatura. Uma relação de "má índole", que beira o desastre e a ruína - e as vidas tormentosas de Flaubert e de Kafka, dois homens que viveram para escrever, ilustram bem isso. Relação de agrilhoamento, em que atuam forças secretas como o desespero, a obsessão e a solidão. Que Kafka, em outra página de seus diários, descreve assim: "É num estado convulsivo de dor que se cria".
Só que a dor de Kafka é, para cada escritor, uma dor diferente, de modo que nem mesmo o teatro da dor pode ajudar alguém a se tornar escritor. Não é uma questão de fachada - como costumam pensar aqueles psicanalistas que, empenhados na imitação do mestre, adotam desde logo a barba e o cachimbo. Nada disso, nenhum ritual, nenhum teatro garante coisa alguma. Então, de nada serve adotar maneiras dolorosas, ou afetar um grande sofrimento. Um escritor pode esbanjar alegria, por que não? É Flaubert, ainda, quem anota em sua Correspondência, em 1853: "Para dizer em estilo próprio feche a porta, ou ele tinha vontade de dormir é preciso mais gênio do que fazer todos os cursos de literatura do mundo". Estilo próprio não diz respeito à moda, nem se refere à última palavra. Também não trata do "bem feito", ou do "bem acabado". Não é uma grife, que se negocia no mercado.
Muitos escritores acreditam, ainda, que a literatura é um grande monstro que avança, compenetrado, sempre em linha reta - rumo a quê? Caberia ao escritor, nesse caso, situar-se no longo fio da história da literatura, conhecer na ponta da língua todos os bons e maus antecedentes, criticá-los, "superá-los" (como uma criança "supera" a fase oral e chega à genital) para, assim, sabendo exatamente onde pisa, dar o grande salto à frente. São os fiéis da idéia de ruptura, que atormenta os escritores desde o modernismo. Ensinar literatura, nesse caso, seria ensinar história da literatura e, também, adestrar os jovens escritores no pensamento crítico, de modo que, sabendo onde pisam, e decidindo onde não querem pisar, possam - como bons estrategistas - dar o passo preciso na direção correta, a caminho, sempre e sempre, da última novidade. Não é algo parecido que se ouve, por exemplo, no mundo da publicidade? Tal escova de dente foi ultrapassada por outra, que contém cerdas mais flexíveis e resistentes. Tal televisão promete imagem mais nítida que as outras. O último modelo de refrigerador...
"Não se deve confundir a mera mudança com o progresso", adverte o argentino Ernesto Sabato em um belo ensaio como Heterodoxia. "Se é fácil provar que uma locomotiva é superior a uma diligência, não é tão fácil provar que nossa pintura é superior à do Renascimento", ele diz. E diz mais: "A crença no progresso geral consiste em supor que um senhor que viaja em um ônibus é espiritualmente melhor do que um grego que se desloca em um trirreme (embarcação à vela da Grécia Antiga). O que é bastante duvidoso". Não, não basta conhecer e criticar a história da literatura para se tornar um escritor. Isso faz, no máximo, um competente professor de literatura. O que, com todo o respeito ao professor de literatura, é muito diferente.
Mas, então, o que falta? Na verdade, a matéria da literatura é essa própria falta. É um enigma, cuja decifração jamais se conclui. "Todos os romances de todos os tempos se voltam para o enigma do Eu", diz, a propósito, o escritor checo Milan Kundera. "Desde que você cria um ser imaginário, um personagem, fica automaticamente confrontado com a questão: o que é o Eu?" A formulação de Kundera aponta para um aspecto perturbador da literatura: ela não é feita de respostas (de fórmulas, métodos, soluções), mas de perguntas (de dúvidas, inquietações, enigmas). E perguntas perturbadoras, como as formuladas pelos filósofos antigos. O máximo que se pode fazer numa oficina literária, se não se quer ser só distrair, ou iludir, é estimular a formulação de perguntas. Fazer perguntas e suportá-las, resistindo à tentação de responder facilmente para, em vez disso, manter-se aferrado - como Nietzsche a seu cavalo agonizante - ao que não admite uma solução.
Aqui podemos lembrar o que Herman Hesse, o grande escritor alemão hoje tão esquecido, diz ao "jovem problemático" que lhe escreveu uma carta no ano de 1932, pedindo uma resposta do mestre a suas inquietações. "Sim, diga sim a si mesmo, a suas particularidades, a seus sentimentos, a seu destino. Não há outro caminho", limitou-se a responder o escritor. O que lhe sugere Hesse? Que ninguém livra ninguém de si mesmo. É com isso, com esse "não livrar", com esse fracasso, que a literatura trabalha. "Ignoro para onde isso conduz", admite Herman Hesse, "mas leva à vida, à realidade, ao arrebatamento e ao necessário". Sugere ao rapaz problemático, sobretudo, que não se iluda com a possibilidade de uma solução. "Sempre que dedico minha fé a uma boa fórmula, ela logo me parece duvidosa e despropositada e logo passo a buscar novos apoios e novas fórmulas", admite. Essa matéria inquieta, que não se deixa fixar e que não se esgota em um nome é, por fim, a matéria da literatura.
O risco de ser um copista
Aferrar-se à própria voz - e, por tabela, à própria sensibilidade, à própria dor, ao próprio olhar - é, sempre, muito difícil. É isso que, no entender do filósofo alemão Arthur Schopenhauer, separa o "pensador de força própria", aquele que pensa por si, do "filósofo livresco", que se limita a pensar idéias alheias. A lembrança de Schopenhauer, enquanto revisito idéias a respeito da arte de escrever, idéias que me marcaram e abalaram muito, não deixa de me meter medo. Ninguém está livre do risco de se tornar um simples copista. Schopenhauer (1788-1860) defende suas idéias num pequeno e precioso ensaio, Pensar por si mesmo, que está em seu Parerga und Paralipomena (algo como Acessórios e remanescentes), livro de 1851. Cinco capítulos deste livro, todos dedicados à literatura, aparecem na seleção A arte de escrever, publicada pela LP&M, sob a coordenação de Pedro Süssekind.
Em Pensar por si mesmo, Schopenhauer faz uma forte advertência a respeito dos perigos da leitura. "Ler significa pensar com uma cabeça alheia, em vez de pensar com a própria", ele adverte. "Nada é mais prejudicial ao pensamento próprio." É claro, Schopenhauer foi, ele também, um grande leitor; não se trata de uma campanha nem contra a leitura, nem contra a literatura. Mas foi, mais ainda, um leitor sábio. Em vez de ler para "relatar o que este disse, o que aquele considerou, o que um terceiro objetou e assim por diante", como fazem os "filósofos livrescos", o autor de O mundo como vontade e representação lia para buscar confirmações, variações, sínteses em torno daquilo que ousara pensar por si. Ele explica a diferença: "Quem pensa por si mesmo só chega a conhecer as autoridades que comprovam suas opiniões caso elas sirvam apenas para fortalecer seu pensamento próprio", diz. "Enquanto o filósofo que tira suas idéias dos livros tem essas autoridades como ponto de partida."
A leitura, diz Schopenhauer, deve ser um ponto de chegada em que o pensador testa o que já trazia dentro de si. E não uma atividade erudita, como é para tantos filósofos letrados - e tantos escritores! - que escrevem para citar, para atestar suas leituras, para agradar e, sobretudo, para obter aprovação. Estratégia na qual a voz própria tende só a emudecer. Para chegar a si, é preciso ter paciência, desistir da onipotência e esperar que algo o atinja. Diz ainda o filósofo: "O pensamento sobre determinado objeto precisa aparecer por si mesmo, por meio de um encontro feliz e harmonioso da ocasião exterior com a disposição e o estímulo internos". A conexão entre o que se lê e aquele que lê define a literatura. "É justamente esse encontro que nunca chegará a acontecer no caso daqueles filósofos livrescos."
Aqui cabe voltar a uma bela idéia de Ernesto Sabato: a de que o diálogo - entre um escritor e seu crítico, entre dois escritores, entre um leitor e um livro - não se parece nem com a catequese, nem com a conversão. "Diálogo, sim. Mas não sofístico, nem catequístico, nos quais sempre sai ganhando o autor do libreto", escreve. "Diálogo livre, herético, mal-educado." Estão dadas as bases do "quase nada" que se transmite em uma oficina literária. Em vez de ensinar regras, desmontá-las. Em vez de aplicar a norma, estimular a experiência da heresia que é a voz particular. No lugar de uma educação literária, melhor pensar em uma deseducação, em que o sujeito se dispa de ilusões, afaste-se dos automatismos, e desista de vez do desejo de brilhar e de agradar. Para, só então, sob sua conta e risco, chegar a si mesmo.
Volta-se inevitavelmente a Nietzsche: "Toda conquista, todo passo adiante na senda do conhecimento é fruto de um ato de valor, de dureza contra si mesmo, de própria depuração". O chegar a si, à própria voz, não é um embelezamento, ou uma performance, muito menos o fruto dourado de um adestramento. É um descascar-se, um escavar como o do escultor que corta e corta a sua pedra, até que, lá de dentro, com as mãos sangrando, tira sua arte. Mas não existem garantias - pois não estamos no reino pragmático das transações bancárias e dos acordos comerciais. Dessa experiência pode, até, sair um escritor. Nada garante que isso acontecerá. Mas, se não sair, ao menos sairão homens um pouco mais apegados a si mesmos, um pouco mais corajosos.
A voz do escritor A. Alvarez Trad.:Luiz Antônio Aguiar Civilização Brasileira 160 págs.
A arte de escrever Arthur Schopenhauer Trad: Pedro Süssekind LP&M 169 págs. Ramon Muniz

terça-feira, 10 de julho de 2012

O que há de tão interessante no subsolo de Paris?

Marquei de encontram a Anna, uma garota Russa que eu só conhecia pela troca de alguns e-mails, em um café na esquina do Boulevard Saint-Germain com a Rue Saint-Jacques, bem ao lado do museu de Cluny, um lugar reservado para arte da idade média, na capital francesa.
Cheguei 30 minutos antes do combinado, o verão em Paris está bastante chuvoso, uma boa razão para entrar logo no café, pedir algo pra comer e esperar pela companhia que compartilharia comigo uma das grandes aventuras que esta vida de fotógrafo tem me proporcionado.
Ela atrasou quase uma hora. A ansiedade que já estava alta no começo, depois de dois expressos fortes, estava me deixando louco.
Conheci a Anna por intermédio do Moser, um americano, explorador urbano dos mais respeitáveis. Quando decidi vir a Paris ele se propôs a me ajudar e, por coincidência ela, que também tinha pedido ajuda ao Moser, estaria nos mesmos dias que eu na cidade e também gostaria de se aventurar pelo subterrâneo de Paris.
Durante as quase 1 hora e meia que passei esperando, vendo a cidade cheia de turistas que se acumulavam nas marquises, muita coisa passou pela minha cabeça, eu procurava não pensar no que estava prestes a acontecer, mas era inevitável, eu estava em um café na cidade que eu mais gosto no mundo, esperando alguém que eu nunca tinha visto, indicado por outra pessoa que eu só conhecia pela internet e que eu tinha encontrado através do Bernardo, um grande amigo que mora em São Paulo e, por sua vez, me encontrou depois de ver meu trabalho sobre Chernobyl, que fiz ano passado. Inevitável pensar que eu estava no meio de uma grande teia de comunicação e que a vida tinha ficado bem mais divertida com essa facilidade toda de conectar-se ao mundo. Finalmente o garoto que cresceu em uma cidade minúscula no interior do Paraná estava no mundo e, não contente, queria agora entrar embaixo dele...
Antes de eu começar a pensar que o atraso fosse um sinal para que eu desistisse, Anna chegou ofegante, tentando dar algumas desculpas, mas já tínhamos perdido tempo demais e fomos pra o local onde o Moser nos indicou há alguns metros de onde estávamos.
Foi difícil acreditar, a entrada para nossa aventura nada mais era do que a tampa de um bueiro, em uma das avenidas mais movimentadas da cidade. Olhei pra ela e percebi que eu teria que tomar a iniciativa, pois ela estava dando sinal de desistir.
Abri a tampa quadrada, tinha uma escada pequena que levava até outra base e de lá outra escada para um túnel. O pavor estava tomando conta de mim, uma vez lá dentro, como sair? Entrei, ela veio atrás e fiquei responsável por fechar a tampa. Quando puxei ela caiu com tudo e quase me machuquei.
Esse tipo de coisa você só faz se for rápido, é como pular de bungee jumping, tem que olhar pro horizonte e saltar, senão o medo domina.
Quando vi estava dentro de um túnel apertado. A Anna tinha o mapa, deveríamos ir em direção ao sul, e queira se afastar o mais rápido possível da entrada. Eu, completamente apavorado com a situação, queria ficar bem ali e esperar que alguém tivesse nos visto e viesse me tirar daquele buraco assustador. Seria a única desculpa que eu aceitaria para não seguir em frente.
Logo no início eu pedi para montar o tripé, afinal de contas fui lá para fotografara. Ela já estava ficando nervosa e disse pra deixar isso pra depois, queria se afastar o mais longe possível da entrada, pois tinha medo que a polícia viesse atrás de nós... justamente o que eu mais queria.
Não teve jeito, tive que segui-la, afinal de contas ela tinha o mapa e aos poucos um labirinto de túneis começaram a surgir diante de nós.
A primeira crise de ansiedade aconteceu mais ou menos uma hora depois de ter entrado. Paramos numa espécie de caverna onde tinha uma placa, era uma homenagem a um rapaz que tinha se perdido e foi encontrado morto anos atrás, se não bastasse ela resolveu me avisar que não estava entendendo direito o mapa e que não sabia em que direção deveríamos ir.
Comecei uma luta incontrolável com os pensamentos ruins que insistiam em aparecer: e se eu ou ela passar mal? quando tentava expulsar essa ideia lembrei que li uma matéria na National Geographic e o jornalista, quando entrou nas catacumbas, estava acompanhando de uma geóloga que sempre media o nível de oxigênio. Como que minha mente foi buscar essa informação lida há meses?
Olhei em volta, um silêncio absoluto, se não fosse pela luz de nossas lanternas, a maior escuridão em que já estive. Por sorte ela decidiu que deveríamos continuar em uma direção que ela achou razoável e eu, numa maneira desesperada de tentar tomar frente a situação começei a procurar entender aquele mapa.
Paris é a cidade do mundo com uma vida subterrânea mais agitada. São aproximadamente 300 quilômetros de túneis mapeados, desses apenas 2 quilômetros são abertos ao públicos e qualquer turista pode visitar, são as famosas catacumbas com os ossos bem organizados em pilhas... uma atração interessante, mas nada comparado ao que estávamos nos propondo a fazer.
Apesar de ser proibido, uma grande quantidade de franceses frequentam esses lugares, são os chamados catafilistas e fazem parte de uma comunidade que se sente bem em estar em um lugar longe do conturbado mundo exterior. Eles passam vários dias, organizam festas ou apenas ficam horas saboreando a paz do subterrâneo.
Andamos umas três horas antes de encontrar alguém. A sensação de ouvir algum barulho depois de tanto tempo quieto ou só falando com ela, foi de alívio, mais ao mesmo tempo assustador, quem seriam? Afinal de contas esse era um cenário ideal para um filme de terror.
Senti que ela também ficou apreensiva. Tentei contato - Bonjour, nada... Salu... nada. O jeito foi chegar perto, eram dois rapazes e se mostraram bastante amigáveis, como todas as outras pessoas que conhecemos depois. Realmente existe um clima de união entre as pessoas que se conhecem lá embaixo, é como se só pelo fato de estar passando por aquilo, algo em comum aproxima as pessoas.
A primeira coisa que ele nos perguntou era se tínhamos uma bússola? A gente se olhou por um instante e ficamos vermelho de pensar em como éramos primários. Lembrei da bússula que tem no telefone e que eu nunca pensei que fosse usar e fui olhar se funcionava lá embaixo, graças ao Steve Jobs, poderíamos caminhar mais confiantes.
A história dessa Paris subterrânea data da era Romana, quando começaram a escavar pedreiras, de onde retiravam Calcário para a construção da cidade que fica onde hoje é a Île Saint-Louis.
Já no século 12, parte do calcário usado na construção da catedral de Notre-Dame, iniciada em 1163, veio do subsolo na margem esquerda do rio, onde estão a maior parte das catas. Uma cidade subterrânea foi se abrindo no decorrer dos séculos para construir a Cidade Luz.
A história dos ossos depositados nas catacumbas são do século 18 e 19, quando os cemitérios superlotados foram esvaziados e os ossos jogados nessas pedreiras. Partes deles formam as catacumbas, com os esqueletos bem organizados para turistas tirarem fotos, mas atrás desse muro de ossos, existem outras centenas de esqueletos desmembrados amontoados por entrem os túneis.
Continuamos em direção ao sul, procurando um dos lugares mais frequentados – “a praia”, uma série de cavernas, todas pintadas por vários artistas, como disse uma museóloga amiga minha, a Cristine Pieske, uma verdadeira demonstração de arte underground.
Ao longo do caminho eu já havia me acalmado, a Anna também estava mais confiante e aos poucos fomos sentindo os prazeres do subsolo. Depois de ter vencido a crise de ansiedade, uma enorme paz tomou conta de mim e comecei a fotografar. Eu estava no ambiente espiritual que eu mais gosto de estar e só chego nesse lugar quando escuto uma voz interior que me manda fazer coisas que a maioria acha um absurdo, foi assim em Chernobyl, foi assim quando larguei minha vida em São Paulo e passei 8 meses na Inglaterra fotografando os imigrantes e tem sido assim desde que iniciei essa carreira.
Quando chegamos na ‘praia’, horas depois de termos entrado pela boca de bueiro, a Anna e eu estávamos em perfeita sintonia, como se nos conhecêssemos há anos, cheguei até a pensar que eu poderia casar e ter filhos com ela. Abrimos nossas bolsas e fizemos uma refeição das mais prazerosas. Ela tinha levado algumas velas e começou a decorar o lugar e eu peguei minha câmera, o tripé, a luz e começei a transformar em imagens toda aquela intensidade de emoções que tomava conta de mim.
Mais uma vez experimentei a sensação de fotografar com tanta confiança que não precisava olhar a imagem no visor da câmera, apenas passava pra outra fotografia tendo a certeza de que eu tinha a foto que eu desejava, a ansiedade neste momento estava a zero. É assim, completamente conectado com minha alma que eu gosto de fotografar, e ali, metros abaixo da cidade de Paris, era o lugar perfeito para fazer isso.
Depois de umas duas horas andando pelas cavernas, senti um vontade grande de dormir, encontrei um buraco bastante confortável e deitei, quando acordei levei um susto, com aquele teto tão baixo e o cheiro forte de mofo, sai rápido dali e fui encontrar minha parceira que também tinha tido sua experiência pessoal.
Saímos a procura de outro lugar que o mapa nos indicava, “O Castelo”, mas logo encontramos um animado grupo de 5 jovens que nos guiaram até lá.
Depois disso outros grupos foram chegando, alguns deles traziam sons, bebidas e faziam suas festas. Fomos ao Castelo e a um lugar imprecionante. Depois de nos arrastarmos por um buraco assustador chegamos a um câmera chamada de “Cinema”, onde literalmente levam projetores e passam filmes. As paredes são todas pintadas com imagens que lembram grandes filmes ou grandes personalidade do cinema.
Ficamos horas por ali. Na tentativa de sair nos perdemos. Agora éramos um grupo de 7 pessoas, eu estava bem no meio, em um labirinto de canais apertados e com água pelo joelho, isso quando não era necessário andar com os pés na parede, metade do grupo foi por um lado e metade pro outro, eu fiquei no meio, e sai correndo até encontrar a Anna, mas depois de tudo que tínhamos passado, essa era apenas uma brincadeira.
Voltando pro hotel, completamente coberto por uma lama bege, estava orgulhoso das mais de 24 horas passadas dentro dos túneis, foi quando descobri que um catafilista sério passa até uma semana sem sair do subterrâneo, mas essa informação não chegou a assustar a minha autoconfiança e continuo com a enorme sensação de ter feito um bom trabalho, algo que câmera fotográfica nenhuma pode me dar, nem um programa de tratamento de imagem pode fazer no meu lugar... só eu e minha enorme vontade de ver o mundo... mais um capítulo para o meu “Vazios Humanos”...
Esta imagem abaixo é uma das fotos que usarei no projeto, as outras mostro na exposição que se Deus quiser acontecerá ainda este ano...

terça-feira, 26 de junho de 2012

Viagem A Chernobyl.


Até hoje, meses depois de ter voltado de Chernobyl, as pessoas perguntam o que eu fui fazer lá. Como fotógrafo sinto que a profissão é cada vez mais uma razão para poder ir a lugares que, caso não fosse pela fotografia, eu não iria. É comum ouvir esse discurso da boca de fotógrafos - a fotografia como passaporte para o mundo, mas é verdade, é assim mesmo que a gente se sente.
Quando o acidente de Chernobyl aconteceu eu era um menino, lembro de ter visto as reportagens e, em diferentes épocas da minha vida, ver fotos e ficar intrigado com aquela paisagem abandonada.
Nos últimos anos tenho me interessado muito pela relação que a fotografia tem com a memória, não só porque cada fotografia, assim que é feita vira uma imagem do passado, mas pelo tema, procurar trabalhar com as marcas do passado na paisagem, as pegadas que o ser humano deixou naquele lugar que eu visito, gosto de falar sobre o ser humano através da ausência dele...
Aqui, algumas das fotos dessa viagem que aconteceu em julho de 2011.