domingo, 5 de maio de 2013
CAMINHOS TORTOS E MOVEDIÇOS
Eu gostaria de compartilhar este texto do José Castello sobre o processo criativo dos escritores. Ele foi um presente que uma grande fotógrafa brasileira, a Milla Jung, me deu no natal de 2007. Apesar de ser sobre literatura, gera reflexões valiosas sobre a fotografia como forma de expressão da alma humana, principalmente pra nos lembrar que ela precisa cada vez mais de espíritos livres e não de burocratas. Boa leitura!!!
CAMINHOS TORTOS E MOVEDIÇOS
O desafio de aventurar-se pela criação literária requer
desvencilhar-se de fórmulas e estar sujeito ao inesperado, à incerteza
e ao imprevisível.
José Castello • Curitiba – PR
Oficinas literárias se disseminam pelo país. Eu mesmo, sempre cheio de dúvidas, comecei a coordenar oficinas regulares em Curitiba. Elas respondem a uma demanda cada vez mais freqüente daqueles que se interessam pela literatura e que desejam, ou se iniciam, escrever. Mas será possível ensinar a escrever? Em minhas pequenas oficinas
literárias — que prefiro chamar de "oficinas da imaginação" — algumas pessoas me pedem isso. É função da escola, e não de oficinas livres, transmitir o conhecimento e o manejo da língua. Portanto, oficinas não ensinam a escrever.
Alguns, ainda mais iludidos, acreditam que oficinas literárias formam escritores. Dito de outra forma: que, se não ensinam português, ensinam a escrever textos literários. Nem o mais brilhante dos mestres tem o poder de transformar alguém em escritor. A arte de escrever não comporta transmissão. Se a ideia é domesticar a escrita alheia, a literatura passa a léguas disso. Pode-se, no máximo, provocar, incitar, apostar numa inquietação. Se digo que literatura não se ensina é porque, para escrever textos criativos, uma pessoa precisa bem mais do que uma dedicada e metódica educação. É preciso, antes, que algo se escreva dentro dela. A literatura começa com uma
experiência de ruminação interior. É uma aventura pessoal e secreta.
Não comporta adestramento, não é uma técnica - como o manejo de uma
máquina, ou o cultivo de uma fazenda - que se conquista pelo esforço e pela repetição.
Um grande escritor como Cristovão Tezza relata, sempre, o estado necessário de meditação profunda, de contemplação, que antecede e prepara sua escrita. Quando começa a escrever um livro, Tezza se põe a perambular pela casa, horas, dias, semanas a fio. Num estado que se assemelha à divagação, remói ideias, visões imprecisas, situações.
Quando, enfim, se senta para escrever, muitas vezes não produz, ao longo de todo um dia, mais que meia dúzia de linhas. Sempre à mão, em um caderno, o que sublinha a posição fundamental de eterno aprendiz, ele se contenta em gaguejar algumas palavras. Não importa que escreva só um punhado de frases: interessa, sim, que, numa espécie de gestação abstrata, incorpórea, uma narrativa se forma, lenta, dentro dele.
Um escritor não chega a decidir que vai escrever um romance, ou um poema. Tampouco controla o ritmo e o tom do que escreve. Algo atua sobre ele, dentro dele, através dele - e à sua revelia. Há um elemento autônomo, e crucial, sempre em jogo. Se a literatura é uma carruagem, o escritor não é o cocheiro que chicota os cavalos. O escritor é o
passageiro que se acomoda solitário na cabine, desprotegido, encoberto
por espessas cortinas, carregado sabe lá para onde. É a conexão com
esse desconhecimento, e não a prática de alguma arte de "bem
escrever", que dele faz um escritor.
Borges desprezava seu primeiro conto, Homem da esquina rosada que, como lembrou um dia, escreveu com grande cuidado, "lendo em voz alta cada página". Em outras palavras: com o fervor de um aluno exemplar.
Por uma premonição misteriosa, que confundiu com o pudor, preferiu
assiná-lo não com o próprio nome, mas como Francisco Bustos, o nome de um de seus bisavôs. Essa opção obscura pelo nome alheio e antigo pode ser tomada como um sinal de que, de alguma forma, mesmo "escrevendo
bem", Borges escreveu Homem da esquina rosada para cumprir uma
incitação externa, e não interna. Para atender ao desejo de outro.
Mais tarde, entendeu que o verdadeiro início de sua carreira literária
estava não nesse conto, mas numa série de exercícios que escreveu
pouco depois, e que sequer chegava a considerar literatura. Ele os
chamou de História universal da infâmia e os publicou na revista
Crítica, entre 1933 e 34. Esses exercícios eram pseudo-ensaios, eram
falsificações, não cumpriam as exigências clássicas do conto. Parecia
claro: não eram contos. Para escrevê-los, Borges lia sobre a vida de
pessoas conhecidas e, em seguida, as deformava. Julgava que fossem
simples jogos de espírito, nada mais que isso.
"Por alguma ironia, Homem da esquina rosada era realmente um conto, enquanto esses exercícios assumiam a forma de falsificações e de
pseudo-ensaios", anotou, mais tarde, em sua Autobiografia. Contudo, é
no campo do "pseudo", isto é, do falso, que a literatura (a ficção) se
faz. Tira-se disso que é no erro, no desvio, é quando escapa de todo
ensinamento, e não no cumprimento severo das normas literárias e dos
cânones, que um escritor se torna escritor. Ninguém se educa para ser
um escritor; a literatura está mais próxima de uma deseducação do que
de uma educação.
Ouvir a própria voz
Com esses exercícios que na verdade são contos geniais, Borges
encontrou sua própria voz, e se tornou um grande ficcionista.
Encontrar sua voz particular é a grande tarefa do escritor, e não
cumprir regras gramaticais, praticar um português impecável, ou exibir
um estilo elegante. "Ninguém se torna um escritor sem conseguir, antes
disso, ouvir a própria voz", diz o ensaísta inglês Alfred Alvarez em A
voz do escritor, belo ensaio traduzido recentemente pela Civilização
Brasileira. Alvarez é crítico literário do The Observer, de Londres, e
professor aposentado em Oxford.
Trata-se de uma experiência radical, que se prolonga por toda a vida e que, em alguns casos extremos, coloca a própria vida em risco.
Pense-se na loucura amarga de Antonin Artaud, na solidão superlotada
de Fernando Pessoa, nas vozes que perseguiam Virginia Woolf, na vida à
deriva de Joseph Conrad. "Para um escritor, a voz é um problema que
nunca o deixa em paz", diz Alvarez. Mais que problema, é um enigma,
que nunca chega a resolver, e com o qual o escritor se vê obrigado a
lidar por todos os seus dias. Como ouvir a própria voz? Não existem
instrumentos, nem exercícios, ou mesmo rituais, que levem a isso. É
coisa que não se ensina, que um escritor aprende consigo mesmo, ou não
aprende.
Alerta Alvarez que ter uma voz não é a mesma coisa que ter um estilo. Isso, ter um estilo, que cheira mais à alta costura que a literatura,
é coisa que qualquer escrevente pode cobiçar. Pior: aqueles que chegam
a "ter um estilo", em grande parte dos casos, se asfixiam em sua
própria couraça, o estilo se torna uma camisa-de-força. Até porque um
estilo - como um penteado, ou uma marca de automóvel - adota-se, vem
de fora. Um estilo é uma casca, uma performance que se aprecia, ou se
rejeita, enquanto uma voz não chega a ser uma escolha, uma voz é uma
maneira inconsciente de soar.
Encontra-se a própria voz pelos caminhos mais inesperados. Para ser escritor, William Faulkner teve de trabalhar como carpinteiro, pintor
de paredes e chefe dos correios. Franz Kafka mofou, por anos a fio, em
um escritório de seguros. Orides Fontela se viu com a miséria, a
penúria mais extrema. Joseph Conrad levou uma dura vida de marujo.
Jean Genet converteu-se em ladrão. François Villon, em assassino. José
Saramago passou anos, décadas inteiras dirigindo jornais. Ernesto
Sabato formou-se em física e matemática. Hilda Hilst se comunicou com
espíritos através de ondas de rádio. Não existem caminhos retos que
conduzam à literatura, eles são sempre tortos e movediços.
E o que distingue a voz própria? O fato de ela ser diferente de todas
as outras, de não se parecer com nenhuma. Então, como se pode ensinar
isso? Simplesmente não se pode ensinar. Pode-se, no máximo, atravessar experiências que favoreçam esse encontro. Experiências literárias, ou seja, leituras. Ler e escrever, e ler e escrever, não para acertar,mas para cavar. Experiências que expandam o olhar e ampliem o timbre da voz de quem escreve. Que alarguem os limites - chegamos à palavra chave - de sua imaginação.
Daí eu preferir pensar em "oficinas da imaginação". Assim como não se ensina a escrever, tampouco se ensina a imaginar. Mas a imaginação pode ser estimulada, atiçada, e mesmo, e infelizmente, desperdiçada.
Ao preferir a imaginação, o que se trabalha não é a língua, nem a
história da literatura, e muito menos o "escrever bem", ou qualquer
outro valor fixo. Trabalha-se, ao contrário, a diversidade, a
irregularidade, o desvio e o susto. "A gente faz algo, através de
nossa imaginação, que não é uma representação, mas sim algo
inteiramente novo e mais verdadeiro que qualquer coisa verdadeira",
descreveu, certa vez, Ernest Hemingway. "Eis por que se escreve, e não
por qualquer outra razão que se saiba."
A formulação de Hemingway é clara: um escritor parte daquilo que
carrega dentro de si e que só com muita dificuldade, e alguma
decepção, consegue encontrar. A decepção é outro elemento chave. Como
nunca escrevemos aquilo que planejamos, ou desejamos escrever, como
nossa escrita está sempre muito aquém, ou muito além de nossos planos,
o escritor precisa suportar o desapontamento, imenso, que a literatura
provoca. Nenhum escritor está satisfeito com o que escreve. Assim como
estranhamos nossa voz quando a ouvimos em um gravador, ou repudiamos nossa imagem quando a vemos numa fotografia, também assim nossa escrita parece, quase sempre, imperfeita e alheia. E aqui é preciso dizer com todas as letras: ela realmente é.
Até porque, como observou mais de uma vez o argentino Julio Cortázar, a literatura não tem leis. Se há uma coisa que a literatura não apenas não comporta, mas sobretudo não suporta, é a norma. Então, como transmitir, como ensinar leis, normas inexistentes? "O romance é um grande baú, é a possibilidade de expressar uma multiplicidade de
conteúdos com uma liberdade enorme", disse Cortázar numa longa
entrevista ao amigo Ernesto Gonzáles Bermejo, publicada no Brasil pela
Jorge Zahar. "Na realidade, o romance não tem leis, a não ser a de
impedir que a lei da gravidade entre em ação e o livro caia das mãos
do leitor."
Única lei: seduzir o leitor. Mas esta é uma lei sem forma, e que não
pode ser fixada em letras, já que para cada leitor, a sedução é uma
coisa diferente. A literatura, diz Cortázar em outro momento, vem mais
de uma "experiência de desajuste", isto é, mais de um desarranjo, de
uma desordem, do que de um bom funcionamento. Diz ele ainda: "Em
determinados momentos, as coisas se apartam de mim, se movem, correm para um lado e, então, desse oco, dessa espécie de interstício que eu não sei exatamente o que é, surge um estímulo que, em muitos casos, me leva a escrever". O escritor, observa também, deve saber suportar uma certa "suspensão da incredulidade". Ao contrário do cientista, que está sempre a criticar a realidade e os princípios que a governam, o escritor deve acreditar no que vê. Um escritor precisa aceitar fatos incongruentes, presenças incertas e verdades improváveis. Ele deve
suportar a perplexidade e a incompreensão, matérias mais nobres da
literatura, ou só escreverá coisas previsíveis.
Recorda Cortázar que, enquanto escrevia os capítulos mais difíceis de O jogo da amarelinha, trabalhava em tal estado de porosidade e de
desamparo, sentia-se tão frágil e exposto que dependia da mulher para
fazer as coisas mais banais. "Ela me dava colo, me levava para tomar
um pouco de sopa", recorda. "Eu estava completamente dominado. Comer, tomar uma sopa, eram as atividades literárias. A outra coisa - a
literatura - era o verdadeiro." A literatura é tão maior do que quem a
escreve que aquele que escreve, sob seu peso, às vezes até se
infantiliza.
Como se ensina isso? Antes ainda: é mesmo o caso de ensinar – de macaquear? Na moda, se todos passam a usar calças com a cintura baixa, basta usar também. Na ciência, conjunto organizado de conhecimentos, o que importa é a demonstração - é saber provar o que se diz. Na religião, o mais importante é reproduzir, letra a letra, sem qualquer
contestação, as palavras dos livros sagrados. A filosofia não se faz
sem um conjunto de princípios e de conceitos manobrados com rigor.
Mas, e a literatura? Tudo o que se pode fazer é trabalhar com leituras
e mais leituras, rascunhos e mais rascunhos, criando assim uma
atmosfera de intimidade e de liberdade interior, densa de tal modo que
facilite (mas nada é garantido, pois não existem regras) o
aparecimento da escrita.
Nunca é demais repetir a sentença genial de Clarice Lispector: "Não
sou eu quem escrevo, são meus livros que me escrevem". Tal experiência
não comporta transmissão, ou adestramento. Não existem escritores bem
formados, ou bem habilitados. Muitos psicanalistas acreditam na
existência, e na boa prática, de uma psicanálise-didática; mas pensar
numa literatura-didática é um absoluto contra-senso. Até existem
escreventes bem adestrados, com técnica afiada e saberes na ponta da
língua: mas escritores, a rigor, não são. Bons escreventes, eles se
contentam em cumprir o legado da tradição, em criticar o passado, em
dialogar com mestres e reverenciar doutrinas. Literatura isso não é.
Fazem lembrar a vida medíocre de um Bartleby, o célebre escrivão
criado por Herman Melville, ou do nosso melancólico amanuense Belmiro,
de Cyro dos Anjos. Bartleby foi o mais sábio: um dia descobriu que, a
qualquer pedido de performance, o mais correto era responder: "Acho
melhor não". A partir dele, pode-se entender o sábio silêncio daqueles
escritores taciturnos que o catalão Enrique Villa-Matas retratou em
seu Bartleby & Cia.
O real e a literatura
Outro argentino, Ricardo Piglia, aponta a relação estreita entre os
movimentos do real (esse grande fundo de susto e desconhecimento que
está encoberto pelo que chamamos, trivialmente, de realidade) e a
literatura. Numa das cenas mais comoventes de Crime e castigo, lembra
Piglia, Dostoiévski relata um sonho de seu protagonista, Raskólnikov.
No pesadelo, Raskólnikov vê um grupo de camponeses alcoolizados que
surram um cavalo até a morte. Em desespero, o rapaz se abraça ao
cavalo agonizante e lhe dá um beijo. O romance de Dostoiévski é de
1866. Duas décadas depois, em 3 de janeiro de 1888, o filósofo
Friedrich Nietzsche, um leitor apaixonado de Dostoiévski, repetiu
(encenou) a cena de Raskólnikov. Numa rua de Turim, Itália, ele se
abraçou chorando a um cavalo que um cocheiro castigava brutalmente, e
depois o beijou. A citação de Dostoiévski, transformada em ato, é para
alguns o início da loucura de Nietzsche; na verdade, é o apogeu de sua
filosofia. E por que não dizer: de sua poesia.
No mesmo ano de 1888, surgem dois dos livros mais radicais de
Nietzsche: O crepúsculo dos ídolos e O Anti-Cristo. Sua filosofia,
embora talhada em forte lastro crítico, não se baseia em experiências
livrescas, mas em uma dolorosa experiência pessoal. Em vez de manejar
conceitos filosóficos, Nietzsche fez de suas idéias um teatro e, com
isso, mais que fazer filosofia, fez poesia. Ele "sofria" de
pensamentos, era objeto e também personagem (vítima) deles -
exatamente como o impulso insano para escrever fez de Clarice
Lispector não só escritora mas, sobretudo, uma personagem, uma vítima
de sua literatura.
Franz Kafka gostava de citar um trecho da correspondência de Gustave Flaubert: "Vivo absolutamente como uma ostra. O meu romance é a rocha à qual me agrilhôo e não sei nada do que se passa no mundo". Em seus diários, Kafka anota uma idéia parecida: "Repouso em cima do meu romance tal como uma estátua que olha para a longe repousa sobre o soco". Tanto Flaubert, como Kafka se referem à relação enviesada,
sinistra, que os escritores têm com a literatura. Uma relação de "má
índole", que beira o desastre e a ruína - e as vidas tormentosas de
Flaubert e de Kafka, dois homens que viveram para escrever, ilustram
bem isso. Relação de agrilhoamento, em que atuam forças secretas como
o desespero, a obsessão e a solidão. Que Kafka, em outra página de
seus diários, descreve assim: "É num estado convulsivo de dor que se
cria".
Só que a dor de Kafka é, para cada escritor, uma dor diferente, de
modo que nem mesmo o teatro da dor pode ajudar alguém a se tornar
escritor. Não é uma questão de fachada - como costumam pensar aqueles
psicanalistas que, empenhados na imitação do mestre, adotam desde logo a barba e o cachimbo. Nada disso, nenhum ritual, nenhum teatro garante coisa alguma. Então, de nada serve adotar maneiras dolorosas, ou afetar um grande sofrimento. Um escritor pode esbanjar alegria, por
que não? É Flaubert, ainda, quem anota em sua Correspondência, em
1853: "Para dizer em estilo próprio feche a porta, ou ele tinha
vontade de dormir é preciso mais gênio do que fazer todos os cursos de
literatura do mundo". Estilo próprio não diz respeito à moda, nem se
refere à última palavra. Também não trata do "bem feito", ou do "bem
acabado". Não é uma grife, que se negocia no mercado.
Muitos escritores acreditam, ainda, que a literatura é um grande
monstro que avança, compenetrado, sempre em linha reta - rumo a quê?
Caberia ao escritor, nesse caso, situar-se no longo fio da história da
literatura, conhecer na ponta da língua todos os bons e maus
antecedentes, criticá-los, "superá-los" (como uma criança "supera" a
fase oral e chega à genital) para, assim, sabendo exatamente onde
pisa, dar o grande salto à frente. São os fiéis da idéia de ruptura,
que atormenta os escritores desde o modernismo. Ensinar literatura,
nesse caso, seria ensinar história da literatura e, também, adestrar
os jovens escritores no pensamento crítico, de modo que, sabendo onde
pisam, e decidindo onde não querem pisar, possam - como bons
estrategistas - dar o passo preciso na direção correta, a caminho,
sempre e sempre, da última novidade. Não é algo parecido que se ouve,
por exemplo, no mundo da publicidade? Tal escova de dente foi
ultrapassada por outra, que contém cerdas mais flexíveis e
resistentes. Tal televisão promete imagem mais nítida que as outras. O
último modelo de refrigerador...
"Não se deve confundir a mera mudança com o progresso", adverte o
argentino Ernesto Sabato em um belo ensaio como Heterodoxia. "Se é
fácil provar que uma locomotiva é superior a uma diligência, não é tão
fácil provar que nossa pintura é superior à do Renascimento", ele diz.
E diz mais: "A crença no progresso geral consiste em supor que um
senhor que viaja em um ônibus é espiritualmente melhor do que um grego
que se desloca em um trirreme (embarcação à vela da Grécia Antiga). O
que é bastante duvidoso". Não, não basta conhecer e criticar a
história da literatura para se tornar um escritor. Isso faz, no
máximo, um competente professor de literatura. O que, com todo o
respeito ao professor de literatura, é muito diferente.
Mas, então, o que falta? Na verdade, a matéria da literatura é essa
própria falta. É um enigma, cuja decifração jamais se conclui. "Todos
os romances de todos os tempos se voltam para o enigma do Eu", diz, a
propósito, o escritor checo Milan Kundera. "Desde que você cria um ser
imaginário, um personagem, fica automaticamente confrontado com a
questão: o que é o Eu?" A formulação de Kundera aponta para um aspecto perturbador da literatura: ela não é feita de respostas (de fórmulas,
métodos, soluções), mas de perguntas (de dúvidas, inquietações,
enigmas). E perguntas perturbadoras, como as formuladas pelos
filósofos antigos. O máximo que se pode fazer numa oficina literária,
se não se quer ser só distrair, ou iludir, é estimular a formulação de
perguntas. Fazer perguntas e suportá-las, resistindo à tentação de
responder facilmente para, em vez disso, manter-se aferrado - como
Nietzsche a seu cavalo agonizante - ao que não admite uma solução.
Aqui podemos lembrar o que Herman Hesse, o grande escritor alemão hoje
tão esquecido, diz ao "jovem problemático" que lhe escreveu uma carta
no ano de 1932, pedindo uma resposta do mestre a suas inquietações.
"Sim, diga sim a si mesmo, a suas particularidades, a seus
sentimentos, a seu destino. Não há outro caminho", limitou-se a
responder o escritor. O que lhe sugere Hesse? Que ninguém livra
ninguém de si mesmo. É com isso, com esse "não livrar", com esse
fracasso, que a literatura trabalha. "Ignoro para onde isso conduz",
admite Herman Hesse, "mas leva à vida, à realidade, ao arrebatamento e
ao necessário". Sugere ao rapaz problemático, sobretudo, que não se
iluda com a possibilidade de uma solução. "Sempre que dedico minha fé
a uma boa fórmula, ela logo me parece duvidosa e despropositada e logo
passo a buscar novos apoios e novas fórmulas", admite. Essa matéria
inquieta, que não se deixa fixar e que não se esgota em um nome é, por
fim, a matéria da literatura.
O risco de ser um copista
Aferrar-se à própria voz - e, por tabela, à própria sensibilidade, à
própria dor, ao próprio olhar - é, sempre, muito difícil. É isso que,
no entender do filósofo alemão Arthur Schopenhauer, separa o "pensador
de força própria", aquele que pensa por si, do "filósofo livresco",
que se limita a pensar idéias alheias. A lembrança de Schopenhauer,
enquanto revisito idéias a respeito da arte de escrever, idéias que me
marcaram e abalaram muito, não deixa de me meter medo. Ninguém está
livre do risco de se tornar um simples copista. Schopenhauer
(1788-1860) defende suas idéias num pequeno e precioso ensaio, Pensar
por si mesmo, que está em seu Parerga und Paralipomena (algo como
Acessórios e remanescentes), livro de 1851. Cinco capítulos deste
livro, todos dedicados à literatura, aparecem na seleção A arte de
escrever, publicada pela LP&M, sob a coordenação de Pedro Süssekind.
Em Pensar por si mesmo, Schopenhauer faz uma forte advertência a
respeito dos perigos da leitura. "Ler significa pensar com uma cabeça
alheia, em vez de pensar com a própria", ele adverte. "Nada é mais
prejudicial ao pensamento próprio." É claro, Schopenhauer foi, ele
também, um grande leitor; não se trata de uma campanha nem contra a
leitura, nem contra a literatura. Mas foi, mais ainda, um leitor
sábio. Em vez de ler para "relatar o que este disse, o que aquele
considerou, o que um terceiro objetou e assim por diante", como fazem
os "filósofos livrescos", o autor de O mundo como vontade e
representação lia para buscar confirmações, variações, sínteses em
torno daquilo que ousara pensar por si. Ele explica a diferença: "Quem
pensa por si mesmo só chega a conhecer as autoridades que comprovam
suas opiniões caso elas sirvam apenas para fortalecer seu pensamento
próprio", diz. "Enquanto o filósofo que tira suas idéias dos livros
tem essas autoridades como ponto de partida."
A leitura, diz Schopenhauer, deve ser um ponto de chegada em que o
pensador testa o que já trazia dentro de si. E não uma atividade
erudita, como é para tantos filósofos letrados - e tantos escritores!
- que escrevem para citar, para atestar suas leituras, para agradar e,
sobretudo, para obter aprovação. Estratégia na qual a voz própria
tende só a emudecer. Para chegar a si, é preciso ter paciência,
desistir da onipotência e esperar que algo o atinja. Diz ainda o
filósofo: "O pensamento sobre determinado objeto precisa aparecer por
si mesmo, por meio de um encontro feliz e harmonioso da ocasião
exterior com a disposição e o estímulo internos". A conexão entre o
que se lê e aquele que lê define a literatura. "É justamente esse
encontro que nunca chegará a acontecer no caso daqueles filósofos
livrescos."
Aqui cabe voltar a uma bela idéia de Ernesto Sabato: a de que o
diálogo - entre um escritor e seu crítico, entre dois escritores,
entre um leitor e um livro - não se parece nem com a catequese, nem
com a conversão. "Diálogo, sim. Mas não sofístico, nem catequístico,
nos quais sempre sai ganhando o autor do libreto", escreve. "Diálogo
livre, herético, mal-educado." Estão dadas as bases do "quase nada"
que se transmite em uma oficina literária. Em vez de ensinar regras,
desmontá-las. Em vez de aplicar a norma, estimular a experiência da
heresia que é a voz particular. No lugar de uma educação literária,
melhor pensar em uma deseducação, em que o sujeito se dispa de
ilusões, afaste-se dos automatismos, e desista de vez do desejo de
brilhar e de agradar. Para, só então, sob sua conta e risco, chegar a
si mesmo.
Volta-se inevitavelmente a Nietzsche: "Toda conquista, todo passo
adiante na senda do conhecimento é fruto de um ato de valor, de dureza
contra si mesmo, de própria depuração". O chegar a si, à própria voz,
não é um embelezamento, ou uma performance, muito menos o fruto
dourado de um adestramento. É um descascar-se, um escavar como o do
escultor que corta e corta a sua pedra, até que, lá de dentro, com as
mãos sangrando, tira sua arte. Mas não existem garantias - pois não
estamos no reino pragmático das transações bancárias e dos acordos
comerciais. Dessa experiência pode, até, sair um escritor. Nada
garante que isso acontecerá. Mas, se não sair, ao menos sairão homens
um pouco mais apegados a si mesmos, um pouco mais corajosos.
A voz do escritor
A. Alvarez
Trad.:Luiz Antônio Aguiar
Civilização Brasileira
160 págs.
A arte de escrever
Arthur Schopenhauer
Trad: Pedro Süssekind
LP&M
169 págs.
Ramon Muniz
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